Yane Mendes tem muito a dizer quando o assunto é comunicação nas periferias. Não é para menos: o trabalho da comunicadora e articuladora de favelas e cineasta periférica a permite ter percepção nítida sobre o teor das informações às quais as populações de tais espaços têm o, assim como em qual intensidade.
Essa lógica reflete-se no trabalho realizado pela Rede Tumulto, coletiva atuante nas periferias de Recife (PE) e que objetiva impactar a realidade das populações que moram nesses espaços, e da Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas, iniciativa da qual fazem parte 11 organizações jornalísticas distribuídas pelo Brasil. Yane é, respectivamente, cofundadora da Rede Tumulto e coordenadora da Coalizão.
Dois aspectos se conectam, então, quando se fala em o e consumo midiático nas periferias por meio das experiências da Rede Tumulto e da Coalizão de Mídias Periféricas. Um deles compreende a representatividade: segundo levantamento do Reuters Institute, não há editores-chefes negros em veículos da mídia hegemônica. Outro sintoma diz respeito, então, à credibilidade. Ainda segundo o Reuters Institute, ao o que 74% da população recorre a meios online – incluindo as redes sociais – para se informar e 51% o fazem primordialmente pelas redes, o nível geral de confiança no trabalho jornalístico é de 43%.
Nesse sentido, representatividade e credibilidade foram tópicos que se sobressaíram na entrevista de Yane Mendes à Fundação Tide Setubal. Além desses temas, o diálogo ou pelo impacto de veículos independentes nas periferias e como o trabalho desses projetos se transforma em serviço de utilidade pública. “Ao se comunicar e falar sobre coisas que as pessoas não são estimuladas a falar na favela, você se torna a pessoa que, no imaginário popular, entende um pouco sobre tudo”, destaca a comunicadora e articuladora de favelas. Outro tema foi, enfim, a urgência de o ISP apoiar com mais veemência a atuação de coletivas com esse perfil e desburocratizar essa dinâmica. Confira o diálogo a seguir.
Yane Mendes: Entendo que estamos vendo uma mudança da mídia tradicional no perfil de quem ocupa os sistemas midiáticos. Mas as oportunidades de emprego, mesmo eu tendo 12 anos como comunicadora popular e fazendo jornalismo de base, não dialogam com a minha realidade quando aparecem – como nos casos das formações exigidas que não são compatíveis comigo. Posso dizer, assim como muitas outras pessoas comunicadoras que fazem trabalho de modo bem eficaz nos seus territórios e poderiam ter oportunidade para expandi-lo e contribuir para meios comunicacionais um pouco mais formais, que sequer conseguimos chegar.
Essa amostragem de personagens negras e de contação de histórias negras, muitas vezes periféricas, indígenas, quilombolas, ainda é muito pouca. Enquanto não estivermos à frente das tomadas de decisões, ainda faremos propostas de pautas que não serão bem aceitas. Além disso, teremos de seguir um sistema ou direcionamento que não condiz com o que a queremos mostrar. Um dos maiores impactos é continuarmos a ter comunicação que reforça, por muitas vezes, grandes preconceitos e estereótipos de maneira bem distorcida em comparação com a realidade.
Yane Mendes: Considero que é bem estranho ver, quando se pretende fazer algo diverso nos tempos atuais, em que há uma comunidade diversa, que precisamos preencher cotas sendo que somos a maioria populacional no Brasil. Os lugares de tomada de decisões precisam estar ocupados pelos nossos corpos e por pessoas que têm, inclusive, contribuições educacionais para além das formações formais. Precisamos valorizar os saberes também da vivência.
Tudo seria muito diferente com a existência de comunicação muito mais assertiva, na qual o povo se visse mais, entendesse que aquilo tem a ver com a sua vida e se comprometesse em espalhar uma determinada ideia ou um determinado programa. Ainda nos veem como pessoas que resolvem BOs. Quando nos verem como quem pode evitar que BOs aconteçam, entendo que as coisas funcionariam diferentemente.
Yane Mendes: Precisamos ainda avançar muito dentro do nosso país. Eu mesma, enquanto comunicadora que há mais de dez anos constrói comunicação popular, estou cansada de estar no lugar de contrapontos. Estou cansada de desmentir fake news e precisar exercer um papel que o próprio Estado deveria fazer. Eu me pergunto sobre quando poderei criar as inúmeras histórias e contar a história de vários personagens de diversas favelas do Recife que eu poderia citar agora e precisam ser contadas. Mas isso nos faz perder um tempo muito grande. O nosso trabalho é necessário, mas injusto. Nós, o povo preto, lutamos por igualdade. Assisti a um vídeo que falava sobre isso: lutamos por igualdade. Que bom, pois se lutássemos por justiça, a história seria bem diferente. Isso me fez refletir a respeito, pois quero poder criar e contar as minhas histórias.
Quero poder não estar preocupada apenas em desmentir o que é feito pelos meios de comunicação de massa e os governantes que contribuem também para essas fake news, assim como os desertos de informação. Ainda temos de nos preocupar com os lugares onde a informação online não chega. Somos nós quem sabemos e valorizamos quem não está nas redes sociais, mas é o nosso público e precisamos fazer o nosso meio de comunicação chegar também a essas pessoas. Acredito que estamos um pouco longe, mas é possível termos essa nova realidade que seja desses produtores no território e de produtores de arte, cultura e de jornalismo que consigamos ter as nossas pautas em vez do que a sociedade fala nos pautar. Para isso são necessárias e diversas modificações nesse sistema em que tenho de produzir, mas o que produzo não me sustenta.
Quando me preocupo com o outro não apenas por ser uma comunicadora, mas também por acabar sendo uma liderança do território, não tenho como dizer que quem está ali é a Yane comunicadora, do cinema ou Pessoa Física. Não é possível haver esse descolamento e não me refiro a CNPJ ou F. Falo do meu corpo, que ocupa o lugar onde o meu público está. Por ter esse o que, infelizmente, ainda é muito limitado na favela, sou um pouco de tudo. Inclusive, até mesmo fazendo papel de assistente social. Isso abrange dizer aonde se deve ir para ar o Seguro-Desemprego ou conseguir um laudo neurológico para o filho com autismo, por exemplo.
Logo, ao se comunicar e falar sobre coisas sobre as quais não há estímulos para as pessoas não verbalizarem na favela, você se torna a pessoa que, no imaginário popular, entende um pouco sobre tudo. Às vezes não é o caso, mas precisamos ser, pois infelizmente “viramos” um equipamento público. Digo “infelizmente” não pelo público procurar, mas por se tratar de uma carga e um peso muito grandes para quem tem várias histórias para construir ainda.
Yane Mendes: Temos um trabalho muito difícil, pois estamos o tempo todo disputando narrativas – construindo-as, mas desconstruindo várias outras. Isso nos faz ter tempo e trabalho de campo bem maiores, mas sempre com muita escassez financeira. Não posso deixar de falar isso, pois já provamos que conseguimos e sabemos fazer. Querem que eu, enquanto comunicadora periférica, repita que já fazemos com pouco. Estou muito cansada de fazer com pouco – isso não é suficiente há muitos anos. Não posso não ter um trabalho fixo e ainda, quando ganhar um freela, ter de tirar R$ 200 para fazer um cineclube.
Não digo que não fazemos, mas sim que não diremos ou naturalizaremos isso. Quando colocamos uma informação que faz diferença dentro do território, fazemos política. Quando informamos sobre o que estamos fazendo no – ou com o – território, o que ainda é mais importante, ocupamos um espaço que deveria ser muito mais valorizado. Somos necessários, mas por muitas vezes não conseguimos fazer mais por conta de alguns desafios, inclusive financeiro.
Yane Mendes: O campo da filantropia ainda tem muitos atravessadores e há muitas redes utilizando esse nome, dominando essa linguagem, pois já trabalhamos com filantropia desde sempre. A nossa ancestralidade já trabalhava com isso. As nossas estratégias também sempre existiram, mas ainda somos pautados por quem se diz necessário para, por exemplo, descentralizar o recurso para chegar ao Nordeste. Hoje não tenho no meu telefone cinco nomes de pessoas que trabalham em institutos. Não digo que queremos um atalho, mas sim que queremos pelo menos apresentar o que fazemos. Contudo, sequer temos o à disputa – e isso é muito triste. Isso porque pegamos um edital e, na maioria das vezes, a sua leitura é de difícil compreensão. Por exemplo, além de precisar ter anos de CNPJ, parece que todo o trabalho que fazemos é negativado.
Parece que não se pensa em outras maneiras de comprovarmos o nosso trabalho dentro dessa estrutura, que é tão fixa, mesmo que seja com pessoas de instituições do território, ou até mesmo regionais, para comprovar o nosso trabalho ou mostrar o tipo de impacto que temos lá. Estamos avançando e entendendo como funciona esse sistema. Mas, mesmo que eu avance e consiga aprovar, enquanto Rede Tumulto, Yane e Coalizão, não deixarei – e não posso deixar – de questionar.
Infelizmente, editais burocráticos não apenas impedem de concorrer, mas também de acreditar que é possível ganhar dinheiro com isso. É muito triste quando as pessoas que fazem a diferença no Brasil acreditam que não sabem falar. Na verdade, é porque muitas instituições e agências não querem mudar o que precisam escutar. Acredito que o edital ainda é uma ferramenta que pode ser utilizada. Mas se não pensarmos que para além da escrita dele ser mais popular, é necessário pensar em como fazê-lo chegar a quem não tem o à internet ou não é alfabetizado, mas faz trabalhos que impactam o território – inclusive fazendo, por muitas vezes, trabalho de comunicação com as rádios populares do território.
Yane Mendes: Sim. Por exemplo, houve diversos mapeamentos desde a pandemia. O que acontece após terem sido feitos? As pessoas já sabem onde estamos e, por exemplo, qual foi o percentual para a eleição do presidente da República. Sabe-se que isso tem a ver com o ensinamento político que fazemos não apenas via redes sociais. Isso vale para coisas como ao ir para uma calçada e conversar com as pessoas. Não fico apenas na minha rede social me conformando com o meu vídeo que bate 10 mil visualizações. É importante também, pois preciso entrar em outras narrativas e não falo apenas para a galera periférica. Sou uma cineasta periférica e construo para todos os públicos. Isso porque não há como eu modificar o Brasil se eu falar apenas da favela para a favela.
Inclusive, quem está no poder nem favelado é. Preciso que a minha fala, enquanto cineasta periférica, articuladora, mobilizadora ou jornalista de favela, chegue às pessoas que nunca pisaram em uma favela, mas sabem que existimos e que tomam decisões que impactam a minha vida e as vidas dos meus. Acredito que a escuta ativa precisa acontecer, mas junto com a ação mais do que nunca precisa acontecer também.
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.
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